Sérgio Godinho / Aníbal Nazaré / Nelson de Barros
Repertório de Sérgio Godinho
Fado triste...
Fado negro das vielas
Onde... agora é que são elas!!!
Encomendaram-me este fado
Mas só se for falado...
Fado falado?
Pagam bem e dão trocado
O fado é pago!
Mas eu que sou gago
Só consigo balbuciar...
Melhor cantar
Mãos caprichosas que sebosas
Mimoseiam a guitarra
Mimoseando o fado nefando
Que se entranha nas vielas
Mãos tagarelas, indecentes
Mãos tão juntas, tão ardentes
Os dedos quentes, insolentes
Só se amainam na guitarra
Espera aí...
Já compreendi que entoando
Mesmo falando, mesmo falando
Se falar como que em verso
Não gaguejo e até converso
Como as tais mãos na guitarra...
Eram assim essas mãos
Mãos de ferro e mãos de farra
Desse Chico de má-vida
Que, p'ra ser fiel à história
Andava na boa-vida com a Glória
E está bom de ver
Que o mulherio de Alfama
Que é todo de alta linhagem
Achava aquilo suspeito:
Vem de viagem esse Chico
Marinheiro, todo feito
E vá de pendurar a âncora
Na varanda da piquena
Estão a ver a cena?
E está bom de imaginar
Que dentro desse lugar
O que tinha a mercearia
Mesmo em frente
Tudo era transparente
O Chico, quando dormia
Era marinheiro em terra
Era a paz depois da guerra
A sua Glória
Por isso dormiam juntos
Sem divisória
Mãos muito sábias, tantas lábias
Nas linhas das quatro palmas
São duas almas irmanadas
Pelas sinas da paixão
Corpo na mão, mão que esvoaça
E amordaça a sensatez
E cada vez que o fado canta
Esqueço tanta da gaguez
Mas um dia, há sempre um dia
Moeda ao ar!
A cara e a coroa viram a sorte mudar
Vamos lá explicar
É que o Chico, c'a memória de ter
Amor de mulher vez à vez em cada porto
Não cuidou de amar a Glória
Foi-se à fruta no pomar
Deixou a planta no horto
Ou seja: resolveu catrafilar
Toda a mulher que passava
Na rua por onde a Glória
E aqui vai mais desta história, espreitava
Ah! que a Glória é mulher tesa...
Quando viu o Chico rua abaixo,
Rua acima atracado a uma 'pirua'
Uma garina de resto bem conhecida
Daquelas que faz p'la vida
E ela toda pimpante... e ele todo galante
Veio-lhe á boca o ciúme
E a navalha foi lume brilhando de raiva
Todo este bairro, que saiba,
Que os dois que ali vão
Vão ter de morrer
Ai, vai correr muito sangue, eu esfolo
Estrafego, eu pego nos dois
Atiro as carcaças ao rio
E nem olho p'ra trás
Tudo isto faz alarido
E o Chico já ferido só tenta dizer:
Glória, que fazes
Que morro sem quase ter
Tempo de me arrepender
Dá-me uma oportunidade
E nesta cidade, eu prometo ser teu
Eu quero morrer no mar alto
E depois ir pró céu
Mãos homicidas, amanticidas
Assim eram se não fosse
O olhar doce por um instante
Desse homem tão inconstante
Mãos que da Glória têm o nome
E em seu nome vão amar
Eu fico gago com o afago
Que essas mãos souberam dar
E o afagar dessas mãos
Já desenha na pele a promessa futura
Jura, vá jura que és todo meu 'té ao fim
Todo, todo de mim
Glória, vou desembarcar dessa vida
Em que andava á deriva no amor
Chico, os meus braços de mar
Dão-te abrigo e calor
E assim acaba esta história;
O Chico e a Glória está bom de se ver
Ambos com vidas atrás
Vão atrás de uma vida em que é tudo viver
Quem fala assim não é gago
Não quero voltar a um assunto encerrado
Mas... digam-me lá
Se eu não sou gago e canto o fado